É aí que mora o perigo
O capitalismo de Estado chinês é o marco ao pé do qual foi enterrada para sempre a ilusão que embalou os sonhos de certos estudiosos das ciências sociais de que o capitalismo seria capaz de engendrar a democracia, e vice-versa. Desde que, no final dos anos 1970, Deng Xiaoping proclamou, com alguns séculos de atraso em relação aos protestantes, que "enriquecer é glorioso", esses rousseaunianos às avessas vêm esperando em vão que o "socialismo de mercado", ao estimular a demanda reprimida por mais liberdade, acabe por empurrar a China para mais abertura política.
O 18.º Congresso do Partido Comunista Chinês, que delibera a sucessão no comando da ditadura que governa a China desde 1949, acaba de reafirmar textualmente que não há no horizonte nenhum sinal de relaxamento. O que há, ao contrário, é um muito concreto movimento universal de refluxo do capitalismo democrático, aquele caracterizado pela oposição do poder do Estado ao poder do capital, para fazer frente à competição predatória que os grandes monopólios chineses estão impondo ao mundo na disputa pelo mercado dos manufaturados que ainda sustentam a maior parte dos empregos do mundo.
Dos EUA democrata-goldmansachsianos de Barak Obama ao Brasil petista-gerdau-mckinseyano de Dilma Rousseff e Fernando Haddad, passando por onde mais se queira passar, o Estado e o capital cada vez mais se dão as mãos, com a consequência necessária de que não sobra em cena nenhuma força capaz de se lhes opor.
A lição reintroduzida pelo pragmatismo chinês, superados os mal-entendidos do século 20, é a de que nada se parece mais com o "centralismo democrático" leninista que a organização interna de uma empresa capitalista, havendo, portanto, muito mais a aproximar do que a afastar o governante autoritário do megaempresário, esses irmãos siameses que nasceram para buscar o poder pelo caminho do dinheiro ou o dinheiro pelo caminho do poder. A verdade histórica, aliás, é que eles sempre andaram de mãos dadas, sendo a democracia - um artifício da inteligência inventado exatamente para forçá-los a separar-se e opor-se um ao outro - um mero interregno a truncar o livre curso das forças da natureza nos pouquíssimos lugares onde chegou a se realizar de modo pleno.
E, no entanto, todos os segmentos "educados" dos diversos países do mundo, sob a regência de uma imprensa em crise, que, por assim dizer, lidera a onda mundial de pânico, agem e vociferam como se o que está acontecendo fosse precisamente o contrário. O problema é que, especialmente quando estão com o rabo preso no torniquete da crise da hora, as pessoas costumam perder todo sentido de perspectiva. Que dizer, então, da perspectiva histórica?!
E é aí que mora o perigo.
O mundo viveu o certame Obama x Romney como se fosse seu. Num instigante artigo para o New York Times anterior à reeleição, Capitalists and other Psycopaths, William Deresiewicz argumentava com humor para concluir que "a ética, no capitalismo, é puramente opcional e extrínseca à sua natureza". Não é só "no capitalismo". A ética é extrínseca aos seres humanos enquanto espécie. É uma construção defensiva das sociedades humanas (entidade com natureza própria) que tem de ser imposta à força a cada um de seus membros.
O pormenor sintomático é que, para ilustrar seu ponto, Deresiewicz teve de viajar 300 anos para trás para lembrar A Fábula das Abelhas - Vícios Privados, Benefícios Públicos, do inglês Bernard Mandeville, "um Maquiavel do reino da economia que nos mostrou como realmente somos e afirmou que a sociedade comercial criava prosperidade ao constranger (para uma boa direção) os nossos impulsos naturais para a fraude (não há lucro sem ao menos uma pequena mentira), a luxúria e o orgulho" (que criam a demanda), de onde saiu o conceito que teria inspirado Adam Smith a formular o seu sobre "a mão invisível" do mercado.
"A 'mão' de Smith era 'invisível'", alertava Deresiewicz. "Mas a de Mandeville tinha de ser 'manejada com destreza por um político muito qualificado', ou seja, em termos modernos essa 'mão' seriam a lei, a regulamentação e os impostos".
Os EUA podem se dar o luxo de se dividirem apaixonadamente em torno da nuance da "mão visível" x a "mão invisível", que parece ridícula para quem vive a realidade esmiuçada no julgamento do mensalão, porque nos 300 anos que nos separam do início dessa discussão têm sido uma excrescência histórica: o primeiro e único governo da Terra desenhado a partir da premissa de que "os homens não são santos", por isso necessitam que a lei lhes imponha à força um comportamento (ético) que os afaste de sua natureza corrupta, aperfeiçoado logo a seguir com a definição complementar de que a principal função do Estado, encarnado por gente movida a sede de poder, é impor limites ao capital, detido por gente movida a sede de poder, mesmo quando o que o capital conquista é estritamente função de mérito.
Fogo contra fogo.
Já a esmagadora maior parte do resto do mundo vem desde os primórdios e sem nenhuma interrupção submetida a ligeiras variações do eterno modelo de um rei cercado de seus barões, para os quais não vale lei nenhuma, vivendo em eterno banquete, enquanto a patuleia pasta.
O medo é o maior inimigo da razão, já se sabe. Mas a Era das Comunicações Instantâneas já vai longe o bastante para que os jornalistas se vacinem contra a ilusão da "aldeia global", que por enquanto só se realizou no que diz respeito ao alcance da voz, e reaprendam a focar seu discurso na sua própria realidade, em vez de confundi-la com a realidade alheia.
Está na hora, aliás, de todos os que vivem sob patrões e governos se lembrarem, dentro e fora dos EUA, de que o auge da democracia foi a cruzada antitruste, que o tsunami chinês afogou, e que esse continua sendo o grande objetivo a ser perseguido.
Ou seremos todos engolidos, feito patos laqueados, e jogados de volta ao passado da selvageria política.
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